sábado, 16 de junho de 2012

Pai contra Mãe (Conto), de Machado de Assis


 
O conto Pai contra Mãe, de Machado de Assis, publicado em 1906, no livro Relíquias da Casa Velha, insere-se na fase “madura” do autor, de características marcadamente Realistas. Ambienta-se no Rio de Janeiro do século XIX antes da abolição da escravatura, que serve de pano de fundo para a narrativa, não se configurando, porém, como a questão principal. Os aspectos sócio-econômicos das personagens beiram a miséria, com dificuldades muito grandes, dependência e escassez. O pensamento predominante é maquiavélico e capitalista, com destaque para a “coisificação” do ser humano, resumindo os escravos a mercadorias.


Fazendo um descortinamento do perfil psicológico das personagens, ele traz à tona o problema do egoísmo humano e da tibieza de caráter que subjuga o discernimento. A sociedade hipócrita em que se ambienta a narrativa é constantemente ironizada pelo narrador que vê em seus mandos e desmandos uma tentativa de impor a ordem social aos dominados, como se pudesse colocar-lhes uma máscara de folha-de-flandres para impedir seus excessos. A oposição em que se apresentam as personagens é uma briga de iguais que legitima o poder da classe dominante e da qual sai vencedor o mais forte, apesar de sua fraqueza moral e instabilidade emocional.



Narrado em 3ª pessoa, é um dos contos em que o autor apresenta a escravidão da maneira mais impressionante e brutal. A instituição forma uma tela de fundo, um elemento do cenário em que se desenrola a trama. Nesse conto a escravidão é o próprio centro da história. Aliás, na primeira linha do conto, o autor escreve: "A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais". Quando Machado escreveu este conto, a escravidão havia sido abolida há mais de uma década e já parecia algo do passado. Como quem não quer nada, Machado começou o conto como se fosse escrever uma anedotinha sobre uma profissão desaparecida devido ao progresso. O personagem do qual ele fala, Cândido, era um caçador de escravos fugidos que os capturava para entregá-los aos seus senhores. Mas ele não andava por montes e vales, vestido de botas, capa e chapéu grande, seguido por cachorros, como os caçadores de escravos que trabalhavam para os senhores das zonas rurais. Cândido trabalhava na cidade. Seu território de caça eram as ruelas, as espeluncas, os mercados, as saídas das igrejas, as procissões, as aglomerações do porto.



Para os escravos fugidos no meio urbano, a melhor coisa a fazer era misturar-se à população negra, livre, alforriada ou escrava para embaralhar as pistas. Aliás, os anúncios dos jornais da época, fonte documentária extraordinária para os historiadores, descrevem todo tipo de subterfúgio usado por escravos fugidos que buscavam confundir-se com o meio urbano. Havia anúncios do gênero: "Um tal escravo, de tal tamanho, fugiu, mas ele faz semblante de ser livre e é habituado de tal parte da cidade".



Os senhores e as autoridades, é claro, faziam questão de cercar de perto a população escrava e decretavam normas proibindo todo escravo de usar sapatos. Logo, todo negro ou mulato calçado era considerado a princípio como sendo livre ou alforriado. Nessas condições, os escravos fugidos que circulavam na cidade podiam facilmente obter sapatos para evitarem ser interpelados. Isso aumentava a confusão social fazendo recair a suspeita sobre todos os negros livres. Essa situação modificou-se após 1850 quando a imigração de proletários portugueses substituiu-se pouco a pouco os escravos no mercado urbano do Rio de Janeiro. Mesmo que Machado tivesse escrito seu conto mais tarde, após a abolição da escravidão, quando a população branca, brasileira e imigrada, era mais numerosa, seus leitores guardariam na memória a lembrança dessa cidade negra e escravagista da metade do século XIX.



Os escravos urbanos eram alugados. Seus senhores os alugavam a terceiros. Isso conduziu a uma situação particular na qual o senhor empregador do escravo não era seu senhor proprietário. Senhores confeiteiros, padeiros, maçons, marceneiros, vendedores de leilão recrutavam escravos alugados para suas atividades. 



Os senhores proprietários de escravos permitiam-lhes o direito de guardar uma parte de seus ganhos a fim de formar um pecúlio que, eventualmente, permitir-lhes-ia comprar sua própria liberdade. Sabe-se que a proporção de escravos que podiam pagar seu próprio preço ao senhor proprietário era muito reduzida. Entretanto, isso representava a recompensa - o estímulo material - que impelia o escravo a trabalhar ainda mais, a fornecer rendimentos ao seu senhor proprietário para aumentar suas chances de comprar sua liberdade. Na situação já descrita do Rio de Janeiro, em que o escravo trabalhava para ganho de um senhor patrão a fim de fornecer uma renda ao seu senhor proprietário, surgia mesmo assim um problema. Isso acontecia quando o senhor patrão explorava o escravo até o esgotamento e a morte, causando, por conseqüência, uma perda não compensada por nenhum benefício para o senhor proprietário que perdia o capital que ele havia investido na compra do cativo. Para cobrir esses riscos, surgiu no Rio de Janeiro companhias de seguro para segurar a vida dos escravos em benefício de seus senhores proprietários.



Eis o contexto social no qual se desenvolvia as atividades de Cândido, caçador de escravos fugidos, personagem central do conto de Machado de Assis. Como ele fazia para ganhar sua vida na cidade? Pela manhã, lia os jornais nos quais havia muitos anúncios de escravos fugidos. Como não havia fotos nos jornais da época, as descrições eram muito detalhadas, assinalando o sotaque do escravo, suas eventuais cicatrizes etc., à maneira da polícia francesa da época no tocante aos condenados a trabalhos forçados que haviam fugido. Essa descrição física comportava pontos imprecisos. 



Assim, após ter lido os anúncios e ter tomado notas das características dos escravos fugidos que ele acreditava poder cruzar nas ruas da cidade, Cândido saía para caçar. Com auxílio de uma corda, ele atacava a pessoa que julgava corresponder a um anúncio determinado. Antes de tornar-se um caçador de escravos fugidos, Cândido havia tentado várias profissões sem sucesso. Entretempo, ele havia se casado com Clara, uma jovem orfã que vivia com sua tia. 



O casamento de Cândido também pode ser visto como algo que merece destaque. Apesar de ser ele alguém sem grandes ambições e gostar de vida fácil, questiona-se porque se casaria com alguém que não poderia dar-lhe boa vida? Sendo ela submissa e influenciável, infere-se que Clara legitimaria a vida medíocre ambicionada por Cândido Neves.



Por não terem meios de estabelecerem-se por conta própria, o casal morava na casa da tia. Mas eles desejavam muito ter um filho e algum tempo depois Clara engravidou. O bebê ia nascer e a tia estava muito preocupada porque eles não tinham dinheiro, nem profissão fixa, e isso ia trazer problemas. Finalmente, quando Clara deu à luz um menino, a tia a convence a abandonar a criança na Roda dos enjeitados, isto é, tratava-se de um guichê giratório instalado na fachada dos orfanatos; esse dispositivo permitia aos pais depositarem seu filho no anonimato e com toda segurança. Isso existia também em Paris e em várias cidades francesas no século XIX. Logo, a idéia de abandonar um recém-nascido era dolorosa mas, em último caso, não era escandalosa.



Após muito hesitar, o pai, cheio de desespero, pegou o nenê para levá-lo à Roda dos enjeitados do Rio de Janeiro. Antes, ele decidiu tentar, ainda uma vez, obter dinheiro para evitar a infelicidade de perder o filho. Retomou os jornais e suas fichas sobre os escravos fugidos. Selecionou então um anúncio que prometia uma grande recompensa por uma mulata fugida na cidade. O texto descrevia a aparência da escrava, os bairros que ela costumava freqüentar e seu nome: Arminda. Com o dinheiro da recompensa, Cândido podia pagar suas dívidas e ter um descanso. Sobretudo, isso permitiria ao casal ficar com o filho. Após ter relido a descrição dessa escrava, ele teve a impressão de já tê-la visto em um dos bairros do Rio de Janeiro. No caminho que o levava em direção à Roda, ele decidiu deixar o bebê com um de seus conhecidos para tentar, uma última vez, encontrar a mulata em determinadas ruas da cidade. Vai a esse lugar e eis que ele percebe a pessoa em questão. Ele a seguiu quase certo de que se tratava da escrava fugida descrita no anúncio. Chamou-a por seu nome: Arminda. Ela virou-se. 



Certo de que era sua presa, Cândido saltou sobre Arminda. Eles se bateram e ela lhe diz suplicando: "estou grávida, me solte, eu serei sua escrava". De fato, no sistema escravagista, também era uso que os indivíduos escondessem e conservassem para seus próprios serviços escravos fugidos pertencentes a terceiros. Cândido recusou e arrastou-a até a casa de seu senhor que morava em um bairro próximo. Machado descreveu bem a seqüência da cena e os leitores desse conto publicado em um jornal da época não tinham nenhuma dificuldade para seguir os itinerários.



Na medida em que eles se aproximavam da casa do senhor, Arminda reagiu ainda mais, ela se debatia e terminou por abortar na entrada da casa. O proprietário de Arminda chegou e deu a recompensa a Cândido. Esse voltou com o dinheiro e, após um pequeno suspense, recuperou seu nenê.



Sucintamente, chegando na casa dele, viu a tia de sua mulher e contou-lhe o que se passou. É interessante porque aqui a mãe não está presente, é um diálogo em que a mãe não intervém mais, somente a tia. Ele conta-lhe a história de Arminda e de seu aborto.



O narrador do texto é um elemento importante para a construção da ironia nesta narrativa. Em terceira pessoa, como já citado aqui, a sua perspectiva aproxima o leitor do tempo e do espaço através de relatos históricos sobre os fatos que envolviam a escravidão, como na descrição das crueldades das quais os escravos eram vítimas. Pareciam ser transformados em coisas, deixando de ser humanos. Por exemplo, quando fugiam “grande parte era apenas repreendida; havia alguém em casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, por que dinheiro também dói”. O escravo, essa coisa, objeto, mesmo quando fugisse, não poderia sofrer muitos castigos, já que estes poderiam impedi-lo de prestar os serviços necessários a seu senhor, inutilizando-o, causando assim, grande prejuízo. 



Quando o narrador comenta “nem todos gostavam da escravidão” e “nem todos gostavam de apanhar pancadas”, qual pessoa gostaria de viver em completa escravidão, à mercê dos mandos e desmandos de alguém e, ainda por cima, levar algumas pancadas? Com sua ironia, parece que é ele, quem dá uma pancada no sistema de escravatura.



A questão da intertextualidade nos textos machadianos com outros textos, pode-se perceber através do processo de construção da personagem principal, Cândido, que do latim significa “alvo”, “puro”, “imaculado”. Nome que foi grandemente popularizado pelo título de um livro de Voltaire, sátira ao otimismo de Leibniz, então em voga, que diz que nos encontramos no melhor dos mundos possíveis. É pertinente a comparação do Cândido de Voltaire e o de Machado, já que ambos são responsáveis por ironizar uma idéia vigente ou um sistema: um o otimismo desenfreado; e outro, o sistema da escravidão em que negros são tratados como objetos e não como seres humanos. Podemos dizer que os dois Cândidos estão longe de demonstrar que o mundo em que vivem é o melhor dos mundos possíveis.



O protagonista da obra de Voltaire é também chamado Cândido, o otimista, já que atravessa um sem fim de desventuras e sempre busca encontrar o lado positivo da situação, seguindo os ensinamentos de seu mestre Panglós. O seu caráter é o reflexo de sua alma, é sensível, apaziguador e sensato: “o seu rosto era o espelho da alma. Era de entendimento claro e espírito simples; e foi essa a razão por que lhe deram o nome de Cândido. Aqui pode-se dizer que reside a ironia do Cândido machadiano, pois seu caráter não revela nenhuma candura, antes pelo contrário mostra-se insensível ao aborto da escrava, é extremamente desumano arrastando-a pelas ruas até a casa do seu senhor, pois o que realmente importa para ele é conseguir alcançar o seu propósito, que é ficar com o seu filho. O egoísmo é sua marca principal. 



A idéia de progresso e perfeição na citada obra de Voltaire está basicamente ligada ao trabalho: “quando o homem foi posto no jardim do Éden, foi ali posto para trabalhar, ut opereratur eum, o que prova que não foi criado para repouso”. Voltaire faz um homem tornar-se perfeito, além de dar-lhe melhores condições de vida, ou seja, ninguém é realmente feliz até que comece a trabalhar. Extremamente irônico, Machado constrói um Cândido que tem uma aversão ao trabalho, para ele todo oficio é custoso, além disso, muitas vezes, quem trabalha não recebe o que merece. Assim seus “empregos foram deixados pouco depois de obtidos". Então lhe restou o oficio de pegar escravos fugidos, já que este estava destinado aos inaptos para outros trabalhos, como era o seu caso. Ele, porém, tinha necessidade de estabilidade, e considerava isso má sorte ou infelicidade constante, ao contrário do Cândido de Voltaire, sempre otimista. Este, todavia, no fim da obra, aceita que é mais importante a ação sobre a reflexão filosófica. Melhor que ficar pensando nos dramas existenciais é colocar-se a trabalhar, pois só o trabalho pode ser o remédio para muitos males, o que não pensa o Candinho de Machado.



É conveniente também citar a ironia presente na construção de duas personagens do conto. Clara, cujo nome do latim significa “brilhante”, “luzente”, “ilustre”, além da tonalidade, seu nome é ligado ao brilho (de distinção). Distinção essa não revelada por sua personalidade que mesmo em meio à perda de seu filho, não esboça nenhuma reação e é sempre submissa aos desmandos da tia. Mônica, a tia, significa só, sozinha, viúva, o que não acontece no texto, pois está, geralmente, perto do casal, abrigando-os, participando de suas decisões, opinando, não fica sozinha, vive em companhia dos dois.



Para dar verossimilhança aos fatos e reforçar a ironia à escravatura e à diminuição dos seres, o espaço ambiente, na cidade do Rio de Janeiro, é fundamental, pois sabe-se que os nomes das ruas em que se desenrola a ação, são nomes reais, e que muitos são os mesmos até hoje. Fato que torna essa narrativa extremamente passível de verossimilhança externa.



Machado de Assis apresenta um pessimismo, cuja fonte está em Schopenhauer, pensador alemão, que afirmava que a essência do universo é a vontade ou o querer, entidade da qual emana a parte verdadeira dos indivíduos. Mas a vontade, tanto em estado cósmico quanto individual, é má, pois provoca a agitação, o egoísmo, o ciúme. Por isso a personagem principal age como age, coloca a sua vontade de continuar com o filho acima de qualquer outra coisa, por isso é levado a agir com egoísmo, luta corpo a corpo com a escrava para poder entregá-la a seu senhor, e receber o dinheiro da recompensa, sem ao menos pensar que poderia agir de outra forma para não maltratá-la, já que estava grávida. 



Vladimir Propp, em Morfologia do conto maravilhoso, relaciona trinta e uma funções ao estudar, pormenorizadamente, contos populares russos, porém, identificam-se algumas destas facilmente neste conto de Machado de Assis. Através delas pode-se perceber como se desenrolou a ação da personagem principal, dentro de um enredo curto, sendo ele um pai que vai lutar para continuar com seu filho, a ironia aqui consiste em não ser a mãe a responsável por essa luta, já que em nossa concepção, a mãe é mais ligada ao filho, por isso mais difícil perdê-lo.



Na função "afastamento", pode-se salientar a tentativa de Candinho em deixar o ócio em que vivia e aprender um ofício, já que agora estava apaixonado por Clara e queria ter em que trabalhar quando casasse.



Na função definida como "ardil", o Cândido Neves sofreu com as interferências da Tia Mônica que era contra o casamento da sobrinha com a nossa personagem e também das amigas de Clara que “tentaram arredá-la do passo que ia dar”.



Na função que trata da reação do herói, Candinho ficou muito triste por que agora ele tinha um filho para sustentar, as dificuldades aumentaram e ele, que agora virara caçador de escravos fugitivos, não conseguia empreitada que lhe rendesse algum dinheiro.



Em outra função, o herói luta para conquistar um objeto, quando a nossa personagem descobriu em suas notas de escravos fugidos o anúncio da fuga de uma mulata em que a gratificação subia a cem mil-réis, achar a escrava seria a salvação, não teria que entregar seu filho à roda de enjeitados como queria a tia de sua mulher: “...agora, porém, a vista nova da quantia e a necessidade dela animaram Cândido Neves. Saiu de manhã a ver e indagar...”.



Pode-se salientar também a presença da função definida como "perseguição" quando Cândido, ao ir entregar seu filho, encontrou por acaso a escrava fugitiva, deixou o filho em uma farmácia e saiu em sua perseguição: “atravessou a rua, até o ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma”.



Em outra função, a tarefa é realizada e o herói é reconhecido. A nossa personagem captura a escrava, entrega-a a seu dono, e recebe a recompensa e volta para casa entre lágrimas com seu filho nos braços. Tia Mônica que não queria saber da criança, ouve a explicação e perdoa a volta do pequeno, uma vez que ele trazia um bom dinheiro para a subsistência da família.



Tendo em vista os aspectos observados, acredita-se que Machado ao construir este conto utilizou elementos que acentuam o tom irônico de suas palavras. 

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